Dia Internacional dos Pronomes
- Arquivo Sáfico
- 15 de out.
- 8 min de leitura
Atualizado: há 4 dias

Sabiam que existe um Dia Internacional dos Pronomes?
Eu só descobri este ano, mas a data foi assinalada pela primeira vez em 2018! Celebra-se anualmente, a cada terceira quarta-feira de outubro (agora lembrei-me que quando dizia nos episódios do podcast Bialogar "todas as segundas sextas-feiras do mês"). Traduzindo do website pronouns, o Dia Internacional dos Pronomes tem por objetivo que respeitar, partilhar e educar para os pronomes pessoais se torne algo comum. Referir-se às pessoas pelos pronomes que elas mesmas determinam é fundamental para a dignidade humana. Ser chamado pelos pronomes errados afeta particularmente pessoas trans e de géneros não-binários. Juntes, podemos transformar a sociedade para celebrar as identidades múltiplas e interseccionais das pessoas.
O pronouns.org acaba por ser o único site oficial desta campanha, embora não tenha um local/organização central. Pretende-se que seja um dia celebrado em todo o mundo, pelas pessoas e coletivos de cada local.
Em Portugal, vi posts relacionados com este dia apenas nas páginas do insta da ILGA e da heforsheflup. (Nem no insta do Arquivo Sáfico pus 🫥, já passa da meia noite e embora no blog dê para ajustar a data no insta já não dá...).
Viram referências a este dia em mais alguma página? Partilhem nos comentários! 🙏
Achei uma ótima iniciativa a criação deste dia e espero que se venha a tornar mais conhecido.
No entanto, eu própria tenho uma relação um pouco dúbia com esta história dos pronomes. Por um lado, acho importante normalizarmos e compreendermos que existem pessoas que usam pronomes diferentes dos que lhes foram atribuídos à nascença, que usam pronomes para além de ela/ela, que existem pessoas que usam vários pronomes e pessoas que preferem não usar nenhum e serem referidas apenas pelo nome, não havendo problema em perguntar e sabendo que devemos sempre respeitar os pronomes que cada pessoa indique como seus.
Por outro lado, odeio que me perguntem pelos meus pronomes (por vezes sou uma pessoa algo contraditória, sim). Sinto que me obriga a escolher. E nem todas as pessoas estão confortáveis em fazer essa escolha. Para mim sempre foi muito triggering esta pergunta. Por um lado, sim uso pronomes femininos. Foram os pronomes que me deram quando nasci, nunca senti qualquer disforia com os mesmos mas também nunca me quis limitar apenas a tal. E sinto que quando me obrigam a responder a esta questão, se disser só pronomes femininos vou estar a negar parte de mim, se disser femininos e neutros vou ter de explicar coisas que não quero explicar. Que são muito pessoais e posso não estar num local ou num mood em que o queira fazer.
Por outro lado, continuo a compreender a importância de perguntar, de responder, de escrever os pronomes junto do nome nas assinaturas, mas faço-o mais pelas outras pessoas do que por mim. Por mim preferia não pôr nada (mas aí também assumem femininos, então é o mesmo que pôr femininos e optei por pôr), ou pôr ambos ela/elu. Mas também ainda não estou pronta para tal. Mantenho apenas os femininos nas assinaturas, embora tenha o meu pin she/they. Que guardo comigo, que me é pessoal e ainda, não tanto, público. Quando tiver paciência para explicar o que é uma mulher não-binária, talvez mude as assinaturas. E na verdade também não é uma super necessidade que tenha, porque acho que é algo tão socialmente construído que ter pronomes ou não ter, usar um ou outro ou outra ou outre, no final devia significar a mesma coisa. Mas como não significa e há pronomes que são mais respeitados do que outros, e pessoas que são melhor tratadas do que outras, continua a ser importante falar-se de pronomes e existir um Dia Internacional dos Pronomes e lutar para que todas as pessoas sejam tratadas com respeito, independentemente dos pronomes, portanto, independentemente da identidade de género.
Quando eu era pequenina e me confundiam com um rapazinho e usavam pronomes masculinos por engano, nunca me incomodou. Incomodava-me o ar envergonhado dos meus pais quando corrigiam os amigos que achavam que eu era um menino. Incomodava-me as pessoas lá da aldeia, incluindo as da minha própria família, que se referiam a mim como "maria-rapaz", "homezana" e outros termos, e que diziam que eu não podia fazer certas coisas por ser uma rapariga. Lembro-me que na altura queria ser um rapaz, não por não gostar de ser rapariga (o que quer que seja que tanto uma coisa como outra signifique), mas por não gostar que me limitassem, porque queria poder fazer o que eu queria e se só os rapazes podiam então queria ser um rapaz. Lembro-me de brincar com o meu cabelo, sobre a cara, como se fosse um bigode. E de amarrá-lo imaginando que o tinha cortado curto. Devia ter uns 7 anos. Nunca pedi para o cortar curto. Mas a cabeleireira lá da aldeia um dia perguntou se me podia fazer um penteado "radical" e eu disse que sim e ela cortou curto, para desgosto da minha mãe. Devia ter uns 12 anos. Eu gostei. No cabeleireiro. Depois da primeira lavagem foi difícil pôr com os mesmos jeitos...
Lembro-me que os pronomes masculinos só me incomodavam quando eram usados com escárnio, para me rebaixar, para me desumanizar, mas nunca quando eram usados por engano. Lembro-me que até achava "fixe", porque "ser rapaz é que era fixe", porque as raparigas não podiam fazer nada. Mas também me lembro de ter a necessidade de me defender enquanto rapariga, quando me trocavam os pronomes por implicância e não por engano, porque não eram as outras pessoas que tinham de dizer o que eu podia ou não fazer, ou quem podia ou não ser, e se eu era rapariga, não era por não me comportar como eles queriam que ia deixar de o ser. Nunca senti aqueles pronomes como meus. Podia ter acontecido. Podia ter sentido "sim, na verdade sou mesmo um rapaz, embora tenha este corpo". Não aconteceu. Mas também não sabia se era mesmo uma rapariga. Porque não encaixava no que diziam que era ser rapariga e as outras raparigas pareciam encaixar e só eu não.
Lembro-me de na minha infância nunca me ter sentido particularmente nem como rapariga, nem como rapaz e quando abordavam o assunto de ser mais assim e dever ser mais assado não percebia porque não podia apenas ser eu. Só queria ser eu. E não percebia porque incomodava tanta gente nem porque tanta gente decidia vir incomodar.
Não me lembro, até porque nunca aconteceu, de ouvir, na altura, falar em pronomes neutros. Em pessoas não-binárias.
De pessoas não-binárias e pronomes neutros só vim a ouvir muito mais tarde, já numa idade adulta. Identifiquei-me em parte. Tinha-me conectado muito com o meu lado mais feminino nos finais da minha adolescência/princípios da idade adulta. Não deixei de lado o meu lado mais masculino da minha infância, que se mantém e tem fases em que aparece menos, em que volta a aparecer mais, em que fica e se sobrepõe, e vai alternando, consoante o mood, e ás vezes nem é mais uma coisa nem outra, é só o que é, mas identificava-me (e identifico) principalmente como mulher. Mas não só.
Lembro-me de uma altura, em Lamego, para onde me mudei no 8.º ano, me dizerem que "parecia uma modelo" a andar. Lembro-me de perguntar se estavam a gozar comigo. Lembro-me da confusão na cara da pessoa, visto que não estava a gozar. E que não sabia que antes me diziam que "parecia um homem" a andar. Que parte foi mascarada, que parte também era minha? É que na mesma escola, em dias diferentes, também ouvi os mesmos comentários de antes, de "parecer um gajo". E mesmo depois disso, e já depois da faculdade, ouvi amigos e namorados a comentarem que a minha expressão de género e que a minha própria voz às vezes mudava consoante os dias, os ambientes, as pessoas com quem eu estava. Tive um namorado (sou bissexual) que chegou a comentar comigo que a minha voz ficava mais grossa quando falava com algumas mulheres. Eu não dava conta. Não notava. Não fazia de propósito. Era automático.
Nunca ninguém me disse, quando era pequenina, que parecia uma pessoa não-binária. Disseram-me que era uma rapariga que parecia um rapaz. Que "andava como um rapaz", e eu estava só a andar... que "jogava à bola como um rapaz", e eu estava só a brincar... que me "sentava como um rapaz", e eu estava só a sentar-me... que não podia gostar de outras raparigas, e eu não percebia porquê... Mas percebia que era mau, que havia algo de errado comigo. Porque era isso que me ensinavam. E retraía-me. E calava-me. E isolava-me. E cresci assim. Hoje felizmente percebo que não era eu que estava mal.
Quantas e quantas vezes as pessoas LGBTI+ foram tratadas por pronomes que não os seus? Memso antes de questionarem com que pronomes se identificavam? Aqui ninguém se preocupava em ter de mudar os pronomes. Para chamar rapariga ao rapaz gay ou rapaz à rapariga lésbica não havia problema em usarem outros pronomes. Para fazerem o mesmo com as pessoas trans, antes de saberem que eram trans, também não havia problema em trocarem os pronomes. Quantas mulheres trans, quando eram percecionadas como homens gays foram chamadas de mulher, e depois quando efetivamente se identificaram como mulheres, só aí é que passaram a ser chamadas de homem? Quantos homens trans, quando eram percecionados como mulheres lésbicas, foram chamados de rapaz/maria-rapaz, e só depois de se identificarem efetivamente como homens, é que lhes vieram dizer "vais ser sempre uma mulher?" Quantas e quantas pessoas ouviram comentários como "não é carne nem é peixe", e usavam ambos os pronomes binários para se referirem a elas, mas depois quando se identificaram como pessoas não-binárias e com pronomes neutros ou todos os pronomes, aí já tinham de ser muito binárias e escolher um dos outros pronomes que não o elu?
Lembro-me de ter mudado de escola no 5.º ano e as pessoas continuarem a implicar comigo pelas mesmas coisas. Mas esta escola era maior e tinha mais pessoas. E agora também implicavam com outro colega da turma, a quem classificaram como gay e afeminado, (inclusive quando me queriam atacar a mim por ser masculina diziam que até ele era mais feminino que eu e suponho que a ele lhe dissessem que até eu era mais masculina do que ele). E implicavam com outra percecionada rapariga da escola que "jogava à bola como eu mas parecia ainda mais rapaz que eu" e com mais outra pessoa da escola que também não conhecia, mas que ouvia dizerem "este rapaz nem parece gay, parece é que tem uma mulher dentro dele". As pessoas não têm problema em usar qualquer pronome. Nem em perceber as eventuais diferenças e diversidades que existem entre pessoas visivelmente diferentes daquilo que é tido enquanto norma. Mas há pessoas que têm um problema com a liberdade das outras e não as querem respeitar. E os pronomes das pessoas são para respeitar. Todas as pessoas (e os seus pronomes) devem ser respeitadas. E é por isto que existem dias como este.
E toda a gente tem pronomes (a não ser que tenha abdicado especificamente de não usar nenhum). Embora também já tenha ouvido pérolas como alguém conhecido estar a dizer a outra pessoa com que pronomes se identifica e ouvir a resposta "aaah, nunca conheci ninguém com pronomes" 🤡 O João que usa o ele e a Maria que usa o ela têm pronomes. E também não gostam quando são trocados. O João e a Maria que usam elu, e todos os outros nomes, com todos os outros pronomes, também só querem ser respeitades. Neste Dia Internacional dos Pronomes, depois de tanta divagação sobre tanta coisa que está e não relacionada com este dia, porque acaba tudo por estar relacionado, mesmo que não pareça, termino este post a relembrar que os pronomes neutros mais usados em Portugal são elu/delu, e que também há quem use "eli/deli" ou "ile/dile"
Que ainda falta fazer muita coisa na gramática portuguesa para que possa haver um verdadeiro uso de uma linguagem neutra em Portugal, não só nos pronomes, mas a todo o nível frásico, e seria muito bom que pessoas da área da linguística pegassem neste tema de forma construtiva e queer friendly.
Que o primeiro livro português a utilizar pronomes neutros foi o livro infanto‑juvenil português "No Meu Bairro", de Lúcia Vicente (se conhecerem outro anterior avisem nos comentários) e que as traduções portuguesas dos livros "Género Queer", de Maya Kobabe, e "Quero apenas o melhor para ti", de Mason Deaver, também utilizam o pronome "elu".
E que podem ler mais sobre pronomes neutros nos seguintes links:
Depois desta pequena amostra de clipping de linguagem neutra, termino este post com o convite para acrescentarem mais artigos/notícias/estudos à mesma nos comentários!
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